Tudo isto é Fado

quarta-feira, outubro 12, 2005

Quando eu era menina

Quando eu era menina rezava o terço na cozinha de minha avó, sentada numa cadeirinha que existia para esse fim.
Quando eu era menina corria pelos campos em flores e deliciava-me com os seus perfumes.
Quando eu era menina ensinaram-me que tinha um anjo da guarda que me protegia de todas as coisas más.
Quando eu era menina ensinaram-me que o Salazar era um ditador que perseguia, prendia e torturava inocentes que eu amava, como o meu avô e os meus tios.
Quando eu era menina brincava às casinhas e com bonecas, vestindo-as com roupas feitas por mim e pela minha mãe.
Quando eu era menina gostava da andar à chuva para depois receber os afagos quentes de minha mãe.
Quando eu era menina o meu pai ensinou-me a olhar as estrelas e a dar-lhes nomes.
Quando eu era menina todas as coisas estavam certas e eram inquestionáveis.

Quando deixei de ser menina o Salazar caiu duma cadeira abaixo e morreu, mas foi substituído pelo Marcelo Caetano, que continuou a perseguir, a prender e a torturar aqueles que eu amava.
Quando deixei de ser menina acreditava que a religião era o ópio do povo e que Deus só existia para superar as dificuldades daqueles que Nele acreditavam.
Quando deixei de ser menina acreditava que a sociedade sem classes seria um paraíso a que todos tinham direito.
Quando deixei de ser menina continuei a cumprir os desígnios de meus pais para comigo.
Quando eu deixei de ser menina acreditava que havia um príncipe encantado que seria capaz de fazer a minha felicidade.
Quando deixei de ser menina aprendi que valia a pena viver e ir à luta.


Quando me tornei mulher descobri que todas as revoluções acabam por se revestir de opressão.
Quando me tornei mulher descobri que não há príncipes encantados, apenas homens cheios de defeitos, insensibilidade incapazes de um diálogo adulto.
Quando me tornei mulher percebi finalmente todos os valores que me tinham incutido.
Quando me tornei mulher descobri que a vida é uma longa caminhada solitária.
Quando me tornei mulher descobri que o amor é apenas uma evasão ao sofrimento do quotidiano.
Quando me tornei mulher aprendi a chorar de noite e a sorrir de dia.
Quando me tornei mulher descobri o meu corpo e a minha sensualidade.
Quando me tornei mulher aprendi que o amor maior era aquele que devotava aos meus filhos.

Agora mulher adulta descobri que só se encontra Deus depois de muito se brigar com Ele.
Agora mulher adulta o sol fugiu e a noite envolveu a minha vida.
Agora mulher adulta, caminhando solitariamente pelos caminhos da vida, compreendi que não vale a pena perguntar o porquê das coisas ou dos acontecimentos.
Agora mulher adulta perdi o sonho e a esperança.


Agora, a algum tempo de descobrir as respostas para as quais o meu espírito não encontra solução, apetecia-me pedir à minha mãe que me abrisse a porta de nansinho e me deixasse aportar, para que me despisse desta vida e pudesse assim encontrar a paz e a harmonia que a dor não me permite viver.

5 Comments:

  • At 8:54 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    O texto está belíssimo amiga, mas sinceramente acho que não deves ver as coisas de forma tão negativa. Há sempre qualquer coisa de belo na nossa vida. Uma amizade, uma flor, um sorriso de um desconhecido. Ânimo e forças.

     
  • At 6:17 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Sem dúvida que a escrita é uma das melhores formas de nos expressarmos. As acções valem muito e tiveste um dom de palavra, com profundidade e sinceridade, numa reunião que só pessoas íntegras o podem fazer. O teu sorriso de dia esteve presente!!

     
  • At 11:02 da manhã, Anonymous Anónimo said…

    Foste simplesmente eloquente!
    A tua intervenção no Pedagógico traduziu o que as nossas mentes menos iluminadas gostariam de dizer.
    Lúcia Rocha (sem blog)

     
  • At 11:51 da manhã, Blogger Amélia said…

    Bela entrada,amiga!É bom ver crescer assim aqueles que coinhecemos em meninos...

     
  • At 12:46 da manhã, Anonymous Anónimo said…

    A vida é bonita, mesmo se, às vezes, nos faz chorar!

     

Enviar um comentário

<< Home